terça-feira, 10 de novembro de 2009



A outra maneira de dizer

A literatura tem coisas que só ela pode oferecer. A palavra posta no papel nunca é só o que está lá, o óbvio, aos olhos de quem lê. As letras dançam, tem vida própria, escondem-se e se revelam, parecem-se com uma dançarina sedutora que tem passos para lá e para cá, de um lado e de outro, escrevendo no palco um convite ao drama que querem mostrar. As letras se divertem assim, mas também se comovem, choram e riem e nos levam com elas, até porque o drama delas é o que se conta das nossas próprias vidas.
Vi isso na outra maneira de dizer a palavra dos filhos de Coré no Velho Testamento. As letras se formaram, ás centenas, num canto de peregrinação que celebra a Deus, o hospedeiro do templo. É que esse Deus cantado é uma fonte de alegria e felicidade, graça pura, para os peregrinos e para os moradores do templo. É um salmo gradual e pode-se dizer também, uma música das subidas, aquela entoada durante a caminhada dos peregrinos. Qual a outra maneira de dizer isso? Seria onde a religiosidade realmente acontece, aquele lugar que muda a alma do caminhante, que faz dele uma pessoa com menos pedaços quebrados pelos visguentos defeitos e pecados.
E tem o Vale do Bálsamo... E uma outra maneira de falar dele... Um vale de lágrimas. Era o lugar das árvores que choravam. Uma plantação de amoreiras que tinha o formato de lágrimas – Uma figura da alma de quem escreveu o poema ou de qualquer outro peregrino. Era ali a última etapa da peregrinação e ficava numa encruzilhada das estradas que vinham do norte, do oeste e do sul. E a palavra dança outra vez, é que Deus sempre nos acha nas esquinas. O texto de lá diz que a lágrima ou a cura dela não conhece limites, ela vem do sul ou do norte, do leste ou oeste. É que o encanto de Deus atravessa todas as fronteiras, cobre esse vale de bênçãos, como a chuva. Bênçãos para o espírito. A palavra de cá pergunta: como pode o ser humano, chafurdado na solidão, no vazio e nas relações quebradas, pensar que a chuva de bênçãos se refere somente ás coisas do corpo e das finanças? A outra maneira de ver isso é o sonho de Deus em partilhar e sarar a mente comum, curar a alma doente, reconstruir o espírito abatido e escravo de mesmices enfadonhas e vulgares. O texto de lá, junto com o de cá, vem falar de força em força, terraço em terraço, muralha em muralha... É que Deus também, de uma outra maneira, nos chama à força.
Por fim, mais vale um dia nos átrios de Deus do que em outra parte mil. Tem outro jeito de dizer isso também: mais vale um dia do modo de Deus do que mil dias a meu próprio modo. É mais gratificante um dia com Deus do que mil deles de acordo com a minha própria escolha. Escolhi a vida toda... E só uma vez que permiti a Deus escolher, valeu mais do que todos os dias que vivi!


Paz, e a gente se encontra pelos outros modos de viver...

Eliel Eugênio de Morais
Pastor
Colorado do Oeste, 06 de Novembro de 2009.

Entre o dever e a beleza

Ocorreu há poucos dias e a sensação ainda está na minha alma e na minha carne. Viajávamos para Goiás em atendimento à convocação de nossa igreja para a convenção bienal da instituição. Íamos pelo Mato Grosso, pela estrada que serpenteia entre montanhas e cachoeiras na altura da Chapada dos Guimarães. E foi lá que nos vimos, eu e os que iam comigo, apanhados entre o dever e a beleza.
Começou na cidade. Um passeio noturno por ruas e casas com mais de três séculos de existência e uma igreja feita de história, suas paredes e janelas moldadas por pedras e baluartes enormes, marcas inegáveis da dor da escravatura negra. Depois disso veio a estrada e, como diria o velho compositor, “bem cedinho de manhã, saber que as misericórdias do Senhor se renovaram”. Foi depois de uns quarenta quilômetros que paramos para ver uma cachoeira de beleza incomparável. Ela mora lá, plantada no meio do cerrado de árvores tortas e cheiros únicos, uma cascata que leva o nome de “Martinha”. Aí se deu uma hora de atraso na viagem, presos pelo encanto, entre o dever de prosseguir e a gostosura da beleza de ficar. E aquele mesmo velho compositor dizia que a luz é como poemas nus e, eu, grato a Deus por ser assim, e o sol me ensina a contar os dias que tenho para viver.
É mesmo assim. Quanta coisa Deus tem a dizer entre as frestas do nosso fatigado dever. Essa estrada é uma parábola da nossa vida. Entramos nela acelerados, cegos e insensíveis, tendo à nossa frente o alvo único da chegada. E vamos assim, em cada reta e curva, escravos do dever e do compromisso. É óbvio que ninguém pode viver sem o dever e a obrigação. Por outro lado, Deus se parece mais com a sinuosa estrada da chapada. É cheio de surpresas e de convites sedutores à beleza. O que significa uma hora de atraso entre a obrigação e o encanto? Significa escutar a própria alma e perceber suas reais necessidades, essas das quais o espírito realmente necessita para viver. Significa também, visto que a vida se completa nos significados, partilhar um pouco da intimidade de Deus e escapar do laço da mente comum, essa mente mediana que nos faz pensar que por muito falar ou muito fazer, é que seremos achados.
Deixamos a cachoeira e rodamos para Goiás. E os dias passaram e o dever também foi cumprido. De volta à minha cidade, outra vez os dias se vão e os deveres se repetem. Eles são de uma insistente e continua repetência. Porém, uma coisa ficou mais que as outras. Aquela hora perdida no encanto da cachoeira e nos cheiros do cerrado, valeu mais que todas as outras e partilhou mais que todas as obrigações. Por quê? Porque Deus deu ali, numa fresta do dever, uma porção generosa daquilo que a alma de fato tem fome: beleza e comunhão. As demais coisas, por mais úteis que sejam, deveriam ser sobras. Apenas isso, nada mais.

Paz, e que a gente se ache pelas estradas do Mato Grosso...

Eliel Eugênio de Morais
Pastor
Colorado do Oeste, 06 de Novembro de 2009.