terça-feira, 10 de novembro de 2009


Entre o dever e a beleza

Ocorreu há poucos dias e a sensação ainda está na minha alma e na minha carne. Viajávamos para Goiás em atendimento à convocação de nossa igreja para a convenção bienal da instituição. Íamos pelo Mato Grosso, pela estrada que serpenteia entre montanhas e cachoeiras na altura da Chapada dos Guimarães. E foi lá que nos vimos, eu e os que iam comigo, apanhados entre o dever e a beleza.
Começou na cidade. Um passeio noturno por ruas e casas com mais de três séculos de existência e uma igreja feita de história, suas paredes e janelas moldadas por pedras e baluartes enormes, marcas inegáveis da dor da escravatura negra. Depois disso veio a estrada e, como diria o velho compositor, “bem cedinho de manhã, saber que as misericórdias do Senhor se renovaram”. Foi depois de uns quarenta quilômetros que paramos para ver uma cachoeira de beleza incomparável. Ela mora lá, plantada no meio do cerrado de árvores tortas e cheiros únicos, uma cascata que leva o nome de “Martinha”. Aí se deu uma hora de atraso na viagem, presos pelo encanto, entre o dever de prosseguir e a gostosura da beleza de ficar. E aquele mesmo velho compositor dizia que a luz é como poemas nus e, eu, grato a Deus por ser assim, e o sol me ensina a contar os dias que tenho para viver.
É mesmo assim. Quanta coisa Deus tem a dizer entre as frestas do nosso fatigado dever. Essa estrada é uma parábola da nossa vida. Entramos nela acelerados, cegos e insensíveis, tendo à nossa frente o alvo único da chegada. E vamos assim, em cada reta e curva, escravos do dever e do compromisso. É óbvio que ninguém pode viver sem o dever e a obrigação. Por outro lado, Deus se parece mais com a sinuosa estrada da chapada. É cheio de surpresas e de convites sedutores à beleza. O que significa uma hora de atraso entre a obrigação e o encanto? Significa escutar a própria alma e perceber suas reais necessidades, essas das quais o espírito realmente necessita para viver. Significa também, visto que a vida se completa nos significados, partilhar um pouco da intimidade de Deus e escapar do laço da mente comum, essa mente mediana que nos faz pensar que por muito falar ou muito fazer, é que seremos achados.
Deixamos a cachoeira e rodamos para Goiás. E os dias passaram e o dever também foi cumprido. De volta à minha cidade, outra vez os dias se vão e os deveres se repetem. Eles são de uma insistente e continua repetência. Porém, uma coisa ficou mais que as outras. Aquela hora perdida no encanto da cachoeira e nos cheiros do cerrado, valeu mais que todas as outras e partilhou mais que todas as obrigações. Por quê? Porque Deus deu ali, numa fresta do dever, uma porção generosa daquilo que a alma de fato tem fome: beleza e comunhão. As demais coisas, por mais úteis que sejam, deveriam ser sobras. Apenas isso, nada mais.

Paz, e que a gente se ache pelas estradas do Mato Grosso...

Eliel Eugênio de Morais
Pastor
Colorado do Oeste, 06 de Novembro de 2009.

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