segunda-feira, 30 de agosto de 2010

CASA VELHA




Com os olhos fechados a vejo.
Não sei se quimera ou memória.
Sei que é bom não saber. Arte feita dentro da alma.
Uma casa velha, adobes descobertos, de caiadura branca,
Rota,
Amarela...
Tem janelas abertas,
Aberta, uma porta para a terra vermelha,
Estrada vermelha,
Poeira e lama, sol e chuva.
É vazia,
A pungente solidão da inutilidade.
Não há gritos, há flores vagabundas aqui e ali...
Presença!
Se essa casa é imagem ou memória é-me uma legítima incógnita.
Deixa sair pelas velhas janelas o vento do encanto do cerrado,
Colhendo os cheiros da mangaba, da pitanga e do araticum...
Indo por sua porta, a estrada vermelha,
Cantando as flores desejadas pelo Bem-te-vi,
Pássaro preto, Juriti,
João bobo...
Bobo na minha quimera!
Lembro da chuvarada no meio do sol, o precioso cheiro da terra,
A água escorrendo corpo afora...
Vejo quem busca essa casa. É deserta.
Noite morna do fogão de lenha,
Estrelas sem fim numa noite comum.
É a presença do eu menino. Lá estive quando menino?
Está na beira do estradão...
E ouço os gritos infantis, correndo,
Vem pela estrada,
Há uma menina sarando de osso quebrado, outros que riem...
Entram na casa,
O enorme araticum é abraçado,
Sentado no chão,
Chão batido, comilança!
Quimera!
Tudo é vazio e solidão,
Silêncio.
A casa está só. É fugaz.
Que solidão tem essa memória?
Uma casa velha, plantada na estrada,
Desfazendo-se num canto indigente do cerrado...
Quando lá me vejo,
Eu não sou,
É o que já fui, alma de menino,
Que ainda hoje,
Não sei se lá estive.




Eliel Eugênio de Morais

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A vida na ponta dos dedos


Agosto é o mês do desgosto, tempo do inverno, das queimadas e secura, tempo das flores roxas e do ipê amarelo. Se, para alguns, agosto surge como tempo de desgosto, para mim são dias de encanto e poesia. É que amo o inverno por ser o tempo que mais se parece com as pessoas. Oscila entre a sequidão e a beleza, como nossas almas e nossos corpos, e é breve, como tudo em nós.
Ela tinha treze anos e foi embora no segundo domingo de agosto, bela e macia, fugaz, como o amarelo que encontro em todo lugar. Que partida estúpida, que dor atroz! Porém há, como no contraste do meu querido inverno, uma pétala de sabedoria esvoaçando, machucando o coração dos adultos que não se perdoam e dos adolescentes que não acreditam que o fim pode vir para alguém tão jovem e, dessa maneira, estraçalhar a beleza. Nós, adultos, não podemos conviver com a colheita prematura, pois pensamos que nossa missão é proteger os que ainda crescem. Por outro lado, os adolescentes também se assombram com a possibilidade real do fim, e isso lhes parece cruel.
Então, sob os ventos que cantam as canções da extraordinária fragilidade humana, olhando para ela adormecida, duas flechas do tempo vazaram a minha consciência. Como bem diz a velha escritora, o tempo é uma sucessão ininterrupta de primaveras e verões, outonos e invernos... Ainda bem que o inverno sempre volta! Eu via no rosto, agora eternamente dorminhoco, as flechas desse ciclo que queima e refrigera ao mesmo tempo. De um lado, nós, os adultos, e a sensação impotente de amar. Eu via e pensava – O que se pode pensar diante da morte? E diante de alguém que se vai tão prematuramente? Uma coisa só: quanto perdemos com zangas e rabugices, quanto sopramos vento afora não dando tempo às palavras e beijos!... Sei que todos, numa mescla de medo e alívio, pensavam na própria carne e nos próprios filhos, todos pensavam que não suportariam um inverno tão cruel, uma separação tão abrupta. Não é egoísmo sentir isso, pode até ser sabedoria se enxergamos a questão do que estamos deixando o vento levar. A segunda flecha me falou dos adolescentes e a questão também foi o tempo. Os vi abraçados e partidos pela perda. É cruel ver pessoas jovens sofrerem uma perda relevante. Porém, outra vez aí pode nascer sabedoria. A possibilidade do “breve” deveria fazê-los enxergar que precisam esvaziar suas almas das coisas medíocres que os tem tomado. Não me refiro às conversas triviais, ao riso e aventuras, essas coisas podem ser mais úteis do que muitos querem ver, falo das zoeiras que os tem empanturrado de superficialidades naquilo que nenhuma pessoa pode ser rasa: amor, relacionamentos, arte e Deus. O corpo de treze anos, dormindo para sempre, foi um grito poderoso de sabedoria e dor... E muito amor ao tempo dos adolescentes que a viram. Bem que a escritura diz que a primavera da vida é fugaz!
Por fim, o inverno vai cumprindo seu curso e o mês de agosto está indo embora. Desgosto? Só isso? Não... Veja os ipês, ainda estão floridos... Assim é você e sou eu. Tudo indo sem parar e aí reside a sabedoria de compreender o que disse a menina, deitada e bela, enquanto ia embora sem poder regressar: “vocês, adultos e adolescentes, têm o que não mais tenho”. E Cecília disse que aos treze anos é que a gente sente a vida na ponta dos dedos...

Paz para você e que a gente saiba usar o tempo que ainda nos resta...

Eliel Eugênio de Morais
Pastor

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A PRETENSÃO DE SER GENTE





Colorado do Oeste nasceu em meio aos morros. A história nos remete a algumas décadas quando um acampamento se espremia numa clareira e foi germinando, fazendo nascer no meio da floresta, um povo. Foi como um parto em meio à moto serras e cacaios. A cidade brotou empurrando árvores de lei, dizem que aqui era o paraíso dos mognos, cedros e ipês. A colonização veio como uma fervura no meio das nascentes e igarapés, dos morros e riquezas, que duraram pouco, como sua exuberante flora.
Tenho pensado nisso, uma cidade que parece gente, um lugar acidentado, com casas belas para uns poucos abastados e taperas tristes para muitos. Andando, subindo e descendo, pois aqui nunca se está parado, ou se desce ou sobe, isso é agrura para uns e encanto para outros. E foi assim, entre um morro e outro (e muitos encantos), que percebi que essa terra tem cara de gente e forma de alma. É uma figura tão bela, tão veraz, que denuncia a gente que vive aqui e a que vive acolá.
Descer é fácil. Cristo disse que se parece com uma porta larga e muitos querem descer. É uma arapuca posta diante de homens e mulheres, tudo concorre a favor, a idéia, o desejo e o convite. São as coisas que nos levam ao apodrecimento de um pedaço, ou pedaços, que era para ser saudável e que se apresenta com o odor e o sabor de quem desce um morro. Descer parece fácil e, quanto mais se desce, mais fundo se vai, até chafurdar-se de vez no rancor, na dívida, depressão, vícios e tantas outras gangrenas ladeira abaixo.
Porém, subir é custoso. Cristo também disse que é como uma porteira estreita e poucos querem andar na contra mão da ladeira. Construir uma casa no morro é mais complexo, mais caro e mais demorado... Que figura para a alma! É assim, afinal enfrentar nosso caráter nu e permitir que a doçura do Espírito Santo o plasme, é como andar morro acima. É lento, duradouro, é contra a corrente dos que descem, porém, é manter-se vivo e saudável, é construir uma casa sem apodrecer os pedaços que realmente nos dão paz. E tem mais uma coisa: chegar lá em cima pode demorar mais do que chegar lá em baixo, mas lá, o vento corre livre e os cheiros são eternos, os igarapés ainda têm água limpa e o horizonte, diferente lá de baixo, é imenso e convidativo, como bem diz a escritura, “olhando para as coisas lá do alto... Prossigo para a soberana vocação” da minha alma.
Hoje, tem uma placa na entrada da cidade dizendo: “Bem vindos a Colorado do oeste”. Quem a fez, talvez não tenha percebido que essa cidade tem a pretensão de se parecer com gente, se não, acrescentaria uma recomendação valiosa: é melhor subir que descer.

Paz para você e a gente se encontra ladeiras acima de nossa terra...

Eliel Eugênio de Morais
Pastor

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Pouso de Emergência


Hoje, pela manhã preguiçosamente ensolarada de agosto, fui cuidar do meu pequeno jardim e me deparei com uma cena muito tocante. Gostaria de compartilhar essa breve vivência com você.
Ao me aproximar para regar um alecrim em fase de crescimento encontrei uma abelha grande, linda, pousada na planta. Observando melhor, vi que ela carregava uma enorme bagagem de elementos extraídos da natureza e que estava tão pesada que a impedia de permanecer equilibrada. Não conseguia nem mesmo andar. A abelha estava irritada, debatendo-se, parecendo querer voar, mas não conseguia porque a carga era desproporcional em relação ao tamanho do seu corpo.
O habilidoso animalzinho provavelmente se desgarrara de seu grupo de trabalho, seu enxame, e estava ali preso ao resultado do seu próprio esforço. Queria voar, se juntar aos demais semelhantes, mas estava impedida. Estava presa.
Imediatamente me recordei de um texto do Evangelho de Mateus, no qual Jesus traz um profundo ensinamento: “vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e vos darei descanso”
De fato, vivemos em um mundo tão acelerado pelas atividades, afazeres humanos inegavelmente importantes, mas que, não raras vezes, estão se tornando obstáculos para nossa felicidade, nossa serenidade, nossa paz interior e o convívio com as pessoas que amamos.
Diante desse chamado do Mestre a “todos os que estão cansados”, fico pensando que, como a abelha que encontrei pela manhã, provavelmente, você também pode estar se sentindo assim neste momento.
Voltando à minha inesperada amiga abelha: ao regar suavemente o alecrim, a água fez com que a bola de matéria prima para a fabricação de mel se desprendesse e ela pode voar rapidamente para o alto, certamente em direção ao seu destino.
Com essa vivência aprendi que é preciso buscar o equilíbrio entre o ser, o fazer e o ter. Nossa alma almeja o alto, o vôo livre no qual devemos carregar apenas o que for suficiente para a viagem e para contribuir com a grande obra coletiva da humanidade.
Como a água que, ao cair sobre a abelha, desprendeu seu fardo escravizante, que as palavras sagradas “aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração”, caiam como gotas maravilhosas para hidratar sua alma, tão sequiosa de luz e absolutamente vocacionada para voar mais alto.
Mas, se as circunstâncias da vida ou a sua própria iniciativa o conduzirem a algum “pouso de emergência”, não se irrite e nem se debata, porque o Mestre disse: “encontrareis descanso para vossas almas, pois meu jugo é suave e meu fardo é leve”. E você poderá, feliz, retomar o seu vôo, nesta viagem de buscas e descobertas.

Aluísio Alves